Ver novas todas as coisas em Cristo desde a Amazônia

  07/07/2022

Gabriel Vilardi, SJ

“E a maior consolação que recebia era contemplar o céu e as estrelas, o que fazia muitas vezes e durante muito tempo, porque com aquilo sentia em si uma grande vontade de servir nosso Senhor” (Autobiografia, nº 11). Assim transcorriam parte dos dias de convalescença do jovem cavaleiro de Loyola. Ferido ao tentar defender a cidade de Pamplona, Inácio teve a sua perna estraçalhada por uma bala de canhão. Obrigado pelas circunstâncias a viver uma longa e dolorosa recuperação, o impetuoso espanhol teve seus sonhos de fama e glória repentinamente interrompidos.

Nesse Ano Inaciano, comemora-se o quinto centenário de um ferimento que desencadeou um profundo e prolongado processo de conversão, daquele que passou para a história como o fundador da Companhia de Jesus. Para além dos muitos feitos e das grandes obras que a historiografia possa ter enfatizado, é preciso voltar o olhar para os primórdios da jornada humano-espiritual do ambicioso Inácio de Loyola. E no começo havia simplesmente uma ferida.

Uma dolorosa ferida, deve-se pontuar, advinda de um retumbante fracasso. A conquista de Pamplona pelas forças francesas consistiu na derrota do exército espanhol, capitaneado por Inácio. Aquilo que poderia ter sido o fim de um sonho, representou o início de uma transformadora viragem. Um caminho não sem crises, turbulências e desânimos. Afinal, aqueles também eram tempos difíceis com a mudança de muitos paradigmas sociais, religiosos e econômicos.

Sem se fechar na sua dor, Santo Inácio tornou-se um contemplativo na ação. Seu olhar foi aos poucos refletindo a mudança em seu coração. “Saindo do próprio amor, querer e interesse” (EE 189) seus horizontes se ampliaram. Deixou de se preocupar com os “feitos que faria para impressionar uma grande senhora” para desejar “ajudar as almas”. “Se São Francisco de Assis fez essas coisas por Cristo, por que também não posso fazer?”, perguntou-se o convalescente de Loyola. Ao se ver recuperado, mas ainda cheio de autocentramento e voluntarismo, inicia uma peregrinação rumo a Jerusalém, com o desejo de imitar os santos.

No meio do caminho, estava Deus. Um Deus desconcertante e próximo, para além dos seus prévios esquemas. O Peregrino se deteve por alguns meses no povoado de Manresa, local em que vivenciará fundantes experiências espirituais, posteriormente sistematizadas nos Exercícios Espirituais. Apaixonando-se pela pessoa de Jesus, seu Princípio e Fundamento (EE 23), aos poucos tornou-se capaz de encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

Os primeiros tempos foram cheios de fervores indiscretos e exageros nas penitências e no descuido exterior. Atormentado por escrúpulos, Inácio passa por intensos períodos de desolação chegando às portas do desespero. Sentindo-se como um aluno conduzido pelo professor, o Peregrino aprende a arte do discernimento e se abre às graças do Senhor. Então, deseja seguir na pobreza o Cristo pobre, com injúrias o Cristo injuriado e ser considerado inútil e louco por Aquele que primeiro o foi (EE 167).

Após os anos iniciais, não sem decepções, incompreensões e perseguições da Inquisição, Inácio encontra seus primeiros companheiros, a quem vai chamar de “amigos no Senhor”. Ao dar os Exercícios Espirituais a esse grupo nascente, do qual faziam parte São Pedro Fabro e São Francisco Xavier, um ardente desejo de servir aos demais toma os corações desses jovens universitários. Com o fracasso de seu plano original, qual seja peregrinar a Jerusalém e a ali permanecer, decidem manter-se unidos e colocar-se à disposição do Papa. Fundada a Companhia de Jesus, seus membros começam a ser enviados para as mais diversas missões.

Sendo um Corpo Apostólico em dispersão, na união de corações e partilhando a mesma missão, a Província dos Jesuítas do Brasil reafirma “com convicção, a Preferência Apostólica Amazônia e o convite a ‘amazonizar’ nossas experiências apostólicas”. Uma preferência sempre em discernimento, em busca do magis e do bem mais universal. Um magis que, longe de ser quantitativo, passa por uma ruptura com quaisquer mediocridades e impulsiona à “audácia do impossível”, como conclamou o Padre Arturo Sosa, SJ, Superior Geral da Companhia de Jesus.

Em comunhão com as Preferências Apostólicas Universais, duas delas tocam particularmente esse chão de missão, o desejo de “caminhar com os pobres, os descartados do mundo, os vulneráveis em sua dignidade em uma missão de reconciliação e justiça” e os esforços para “colaborar no cuidado da Casa Comum”. Mas não menos importante é “mostrar o caminho para Deus através dos Exercícios Espirituais e do discernimento” e “acompanhar os jovens na criação de um futuro cheio de esperança”. Todas essas dimensões tocam profundamente o carisma inaciano, integrando, inclusive, parte substancial da identidade da Companhia de Jesus.

Entre os compromissos assumidos, recentemente, estão a adequação das práticas institucionais e as estruturas físicas em consonância com o paradigma da ecologia integral e o cuidado com a Casa Comum, o trabalho em rede entre as presenças apostólicas e obras jesuítas e a colaboração com os demais organismos eclesiais, especialmente a Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), bem como o aprofundamento da consciência e da prática da justiça socioambiental, sem olvidar a incidência socioambiental-político-cultural, na formação de opinião e na construção de políticas públicas (Plano Apostólico da Província do Brasil: 2022-2026).

Para afastar o risco de se tornar mais uma organização não-governamental (ONG), é preciso estar atento a identidade própria de cada presença apostólica e obra ligada a Companhia de Jesus. Enraizados neste vasto e fecundo Corpo Apostólico os muitos membros podem e devem exercer suas missões específicas, sempre cientes de suas origens comuns.

Como dizia Cláudio Perani, SJ, (1932-2008), um dos superiores dos Jesuítas da Amazônia, “a gratuidade também inclui uma particular eficácia”. “Está relacionada ao amor e à liberdade e pode favorecer energias insuspeitas, capazes de criar novas esperanças e novas autonomias”, continua o fundador do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES) e da Equipe Itinerante. Ou seja, os planos e documentos são de suma importância ao apontar os marcos orientadores e os princípios inspiradores, mas não podem jamais aprisionar a Divina Ruah, que é pura criatividade.

Por isso, é imperioso contemplar a realidade desde a “Querida Amazônia” que se apresenta “aos olhos do mundo com todo o seu esplendor, o seu drama e o seu mistério”, como nos recorda o Papa Francisco no começo da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia. Nunca a partir de um olhar colonizador e maculado pela cobiça de um capitalismo selvagem e desenfreado.

Encarnar-se apostolicamente nessa região implica em reconhece-la como um lugar teológico privilegiado de confluência de uma multiplicidade de povos, culturas e biodiversidade incalculáveis, por um lado. Enquanto se reconhece uma realidade fortemente ameaçada pelos interesses econômicos predatórios que somente conseguem enxergar grandes depósitos de mercadorias disponíveis e lucros fáceis e exorbitantes. De outra forma, impõe-se deixar uma perspectiva ingênua para se adotar uma visão crítica e questionadora na análise dessa conjuntura tão complexa.

Megalomaníacos projetos de infraestrutura elétrica, rodoviária e ferroviária, cobiçosa extração de minério e garimpo ilegal, agronegócio inescrupuloso são apenas alguns dos muitos inimigos “devoradores de floresta”, como denuncia o líder Yanomami, Davi Kopenawa. Os índices de desmatamento voltaram a bater recordes alarmantes, a fronteira agrícola continua a avançar despudoradamente em direção ao bioma amazônico, que além do risco de desertificação, já afeta o regime de chuvas ao redor do país.

A perigosa falácia de que a Amazônia é um “vazio verde”, propagada criminosamente pela ditadura militar, tem provocado irreparáveis danos às centenas de Povos Indígenas que habitam a região há milhares de anos. Como não fazer memória do genocídio praticado contra o Povo Waimiri-Atroari, na construção da BR-174, que liga Roraima a Manaus, na década de 1970? Quase 3.000 indígenas foram exterminados, além do desaparecimento de outros dois povos. Atrocidades cometidas em nome do “desenvolvimento nacional”! Resta saber: desenvolvimento para quem?

Conforme o relatório recentemente publicado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – Regional Norte 1, Terras Indígenas não Demarcadas: Amazonas e Roraima, existem pelos menos ainda 202 territórios indígenas que sequer tiveram o procedimento de demarcação iniciado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Fora as 29 terras indígenas que aguardam a conclusão de alguma das etapas necessárias para finalização do processo demarcatório. Isso apenas e tão somente nos Estados do Amazonas e de Roraima!

Um inaceitável escândalo, considerando que o art. 231 da Constituição Federal de 1988, determina que são reconhecidos aos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Já se vão quase trinta e quatro anos e a inércia do poder público é gritante e leva à indagação: ineficácia ou desejo deliberado? Como se não bastasse a tese do marco temporal que as forças anti-indígenas tentam aprovar no Supremo Tribunal Federal seria um retrocesso inimaginável na vida de milhares de indígenas. Afinal, sem território não há possibilidade de vida digna para os Povos Indígenas.

Outro aspecto sensível da realidade amazônica, sob o qual pousa o olhar inquieto que parte da fé, é a migração em massa. Nos últimos anos, milhares de migrantes cruzaram diariamente as fronteiras em busca de condições mínimas de sobrevivência. No primeiro momento foram os haitianos, depois vieram os venezuelanos e tantos outros, todos fugindo das crises política e social de seus respectivos países. E de repente, o Brasil nação formada por muitos povos migrantes também se viu assolado por intenso sentimento xenofóbico.

Como não se perder em meio a situações tão desafiadoras e que estão além das próprias forças e das capacidades de respostas das obras e presenças apostólicas que se integra? Muitas vezes o gosto amargo das fragilidades impotentes frente às crescentes injustiças parece turvar o olhar. E então se é convidado e convidada a voltar-se a uma ferida que completou quinhentos anos e também foi sinal da finitude humana.

Tomar nas próprias mãos a humanidade ferida permite abrir-se a um outro mundo. Mundo esse que necessita ser sonhado em muitos corações. Ao deslocar-se do centro da própria existência abre-se espaço a outros rostos. O Papa Francisco, formado na escola dos Exercícios Espirituais, após discernir os sinais dos tempos propôs um sonho social, um sonho cultural, um sonho ecológico e um sonho eclesial:

Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja escutada e que sua dignidade seja promovida.

Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazônia que guarda zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.

Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e de se encarnar na Amazônia, a tal ponto que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos.

Inácio de Loyola foi homem em crise que acolheu suas fraquezas e abraçou a vontade de Deus em sua vida. Alguém que se experimentou profundamente amado pela Trindade que contempla a humanidade em suas contradições e mantém acesa a chama da esperança até o fim. Da Criação luminosa passando pela encarnação fecunda e banhando-se na confirmação da Cruz que aponta a Ressurreição gloriosa, sempre tremula a teimosa esperança.

Inspirados pela vida do santo de Loyola e interpelados pelos sonhos proféticos de um Papa, membro dessa mínima Companhia, há que se deixar questionar pessoal e institucionalmente: temos sido aliados nas lutas pelos direitos dos povos indígenas, dos migrantes e dos marginalizados; valorizamos a diversidade cultural no nosso modo de proceder; somos guardiões da Casa Comum e promotores da ecologia integral; integramos comunidades abertas e dispostas a encarnar um rosto amazônico?

Que Maria, a Senhora da Estrada e Mãe da Amazônia, coloque a cada um e a cada uma com seu Filho Jesus, o Libertador das noites escuras. E, assim, em meio às crises e feridas nossas de todo dia possamos peregrinar rumo ao nosso eu mais profundo e, bebendo desse manancial de coragem, discernir e assumir com compromisso os apelos de Cristo que aponta para Amazônia, como já dizia o Papa São Paulo VI, há mais de 50 anos. Juntemo-nos a um dos filhos de Inácio, àquele que não tem medo de se mostrar frágil em uma cadeira de rodas e sonhemos juntos e juntas uma Amazônia pulsante de vida nova.

Fonte: Dom Total